Lembro-me bem do dia em que cheguei naquele lugar. Era um condomínio de prédios no meio da estrada próximo ao aeroporto de Maceió, bem afastado do centro da cidade. Um universo auto-contido com seus pequenos bares e mercearias dentro. Fazia um sol escaldante, era início de tarde num sábado de verão, dia em que as cores ficam mais vivas e que a energia e o bom humor das pessoas costumam ser proporcionais à procrastinação que as persegue.
Levantando poeira pela rua de barro que separa o condomínio da estrada, adentramos aquele mundo de prédios uniformes de três andares, todos com fachada verde e branca.
Lá dentro eram paralelepípedos cortados por pequenas áreas gramadas que circundavam cada um dos prédios e suas respectivas áreas de garagem . Ao entrar, avistei pelo vidro um grupo de três garotos sentados no capô de um velho calhambeque. Um deles me mostrou o dedo do meio.
O prédio em que meu pai morava era próximo à guarita de entrada, o número quatro. Éramos meu pai e meus dois recém conhecidos meio irmãos no carro. Amanda e Luiz. 14 e 8 anos respectivamente. Amanda era uma jovem precoce pra idade, se vestia e tentava se portar como uma uma moça mais velha e antes de falar com ela seria possível acreditar cegamente nessa personagem. Luiz era um típico garoto de oito anos, com camisa de futebol, animado, fã do pai e super entusiasmado com o "presente" novo, um irmão mais velho.
Tudo que eu pensava naquele momento era em como conseguiria chegar a Natal pra encontrar a pessoa que na época considerava o grande amor de minha vida, Alicia Teixeira. Nunca havia visto Alicia Teixeira na vida. Sequer em foto.
Nos conhecemos em uma sala de bate-papo na internet. Entre os "quer tc?", acabamos nos cruzando e conversando por muito mais tempo do que seria considerado saudável. Nos encontrávamos em determinado horário dentro de uma mesma sala quase todos os dias. Com o tempo, passamos a ter um contato "mais próximo", o ICQ e depois o MSN. Ainda não existiam redes sociais com o Orkut ou Facebook.
Era a inocência de se apaixonar por alguém baseado apenas no que era escrito. De imaginar conforme descrição forçada e provavelmente falsa - artifício ao qual também recorria . Criamos nossos avatares, nossas máscaras.
Até hoje me parece fascinante essa pré-disposição em embarcar cegamente numa fantasia, em viver algo que é muito mais meu do que nosso.
"Para Bataille uma máscara representa "uma obscura reencarnação do caos"; são formas "inorgânicas" que se impõem aos rostos, não para ocultá-los, mas para acrescentar-lhes um sentido profundo. Na qualidade de artifícios que se sobrepõem a face humana, com o objetivo de torná-la inumana, essas representações "fazem de cada forma noturna um espelho ameaçador do enigma insolúvel que o ser mortal vislumbra diante de si mesmo". Por essa razão "a máscara comunica a incerteza e a ameaça de mudanças súbitas, imprevisíveis e tão impossíveis de suportar quanto a morte". Era preciso um artifício que acentuasse o caráter fantasmático desse horror, de forma a revelar - Bataille diria: "encarnar - seus aspectos mais ameaçadores.
Sendo "inorgânica", assim como a literatura, a máscara do pseudônimo veio a fornecer um "espelho" capaz de projetar e multiplicar as terríveis experiências do autor, a ponto de torná-las comuns a toda humanidade, evidenciando o enigma que funda a condição mortal de cada homem. Sob a máscara trágica de Lord Auch, a História do Olho se oferece como uma autobiografia sem rosto."
- Eliane Robert Moraes
Prelúdio:
Página inteira: Em branco com uma pequena mancha negra(ou ponto) exatamente no centro. BALÃO: Vindo de fora da página - Vamos ter que abrir
Página inteira: A pequena mancha negra vai se expandindo para os lados como a traçar uma linha. BALÃO: Vindo de fora da página - Olho na pulsação, não podemos perdê-la!
Página inteira: A mancha / ponto torna-se um semi-sorriso agora, com covinhas na lateral, algo sutil, quase fofo.
Página inteira: O sorriso/corte é esgarçado pela passagem de um bebê, dá-se ao papel a impressão de amassado ao redor do corte, como um embrulho sendo rasgado sem nenhum cuidado.
Quase uma boca num misto de grito, arroto e vômito.
BALÃO: vindo de fora da página - Porra, cê tá bêbada ou o quê?!? Ela tá tendo uma hemorragia, o corte atingiu um vaso, precisamos de sangue...
Página inteira: Lâmpada de hospital no centro da página
Recordatório dentro de um quadrado:
O cordão estava enrolado em meu pescoço. Não sei dizer se queria sair. Devia ser confortável lá dentro. É interessante exercitar a lembrança e cair direto onde gostaria, em argumentos que caem como uma luva nisso aqui. Lembro-me do início de "Confissões de uma Máscara", de Yukio Mishima, quando ele fala sobre sua memória mais antiga, que remonta ao próprio nascimento, e de como ela tende a ser um provável fruto de sua imaginação aos olhos dos outros. O que não a impede de ser real(e ele afirmar ser), de ter cores, textura, detalhes. De ser importante, seminal.
Página inteira: imagem de fundo, médico e enfermeiras sorrindo, sorriso branco, "plastico", "expressões plásticas".(a partir desse ponto utilizarei esse adjetivo, plástico, sem aspas, será algo recorrente e tenho certeza de que você já criou dentro de si a imagem e o significado disso)
Recordatório dentro de um quadrado:
A ideia de não-linearidade do tempo me agrada e acredito que só consiga explorá-la de forma inteligível e inequívoca através da narrativa gráfica. De símbolos que serão guia. Quadro a quadro. Com possibilidades de ir e vir num tempo que pertence a você.
Página com nove quadros intercalando um com desenho, outro com texto:
Quadro um: Privada vazia
Quadro dois: Quadro negro com texto:
- O que pretendo contar são apenas momentos de minha vida. Costurados pelas linhas dos desenhos. Qualquer tentativa de ser fiel aos fatos será falha.
Quadro três: Rosto sorridente de uma enfermeira, sorriso e expressão plástica idênticas às anteriores.
Quadro quatro:
Quadro negro com texto:
- Qualquer tentativa de descrever quem e como sou também falharia. É impossível não ser vítima da vaidade.
Quadro cinco: Pombo visto de perfil
Quadro seis: Quadro negro com texto:
- Também não estou aqui para julgar as pessoas que participaram de toda(s) essa(s) narrativas. Irei de um ponto a outro com pulos temporais tanto pra frente quanto pra trás, ignorando mudanças dentro de mim que talvez sejam evidenciadas pelo texto. Muitas delas, caso transpareçam, serão mero simulacro tendo em vista o tempo que passou.
Quadro sete: Agulha
Quadro oito: Quadro negro com texto:
- Muitos relatos estão fadados a incorporar ficções ao bel prazer do inconsciente. Acredito que formuladas em parte pela absorção peculiar de determinados fatos. Não precisaria dizer o quanto o todo estará impregnado do olhar atual. Estarei buscando o entendimento desse personagem que é quase-eu em experiências que indubitavelmente me definiram como pessoa(acho). Ao longo da vida acumulamos máscaras e ...
Quadro nove:
Rosto sorridente - sorriso e expressão plástica - de uma criança
Fim do prelúdio
Capitulo 1
Página inteira: Desenho de uma máscara de demônio de borracha no ar. É como se ela estivesse no rosto de alguém invisível, mas os olhos estão vazios e não tem pescoço, é só a máscara,
suspensa no ar.
Recordatório em um retângulo:
- A primeira máscara arrancada de mim foi a do demônio.
Página inteira: Tentativa de um desenho "por detrás da máscara", adotando seu ponto de vista. É possível ver um parquinho, com balanço e uma criança(uma garota) se aproximando.
O efeito para mostrar que a cena acontece a partir do ponto de vista da máscara seria colocá-la, de certa forma, em primeiro plano, olho de peixe, olhando o parquinho, os contornos do olho e nariz da máscara seriam em pontilhado(esse recurso do pontilhado é algo que vai ser frequente, seria interessante se você conseguisse desenvolver isso dentro da sua estética ou desse alguma ideia que substituísse isso mas com a mesma intenção). O parquinho sendo visto através dela, e a criança se aproximando..
Página inteira: Garota enfia os dedos pelos olhos da máscara, rindo,
Página inteira: A partir dos olhos e nariz, a garota rasga a máscara com os dedos, ainda rindo. O efeito visual de rasgo deve ser similar à página do rasgo da barriga da mãe no início do prelúdio.
Página inteira: Contraplano a partir do olhar/ponto de vista da garota risonha: As mãos dela estão em pontilhado na direção dos olhos da máscara rasgada.
Página inteira: Ainda adotando o ponto de vista da garota que rasga a máscara: Pedaços da máscara em suas mãos, os dedos já não estão em pontilhados(o restante da mão e o antebraço ainda seria pontilhado).
Rosto do garoto parcialmente sem máscara, como se a máscara tivesse se dividido em dois, revelando a expressão de seu rosto:
Misto de surpresa e susto,
lágrimas se formando.
Seria interessante nesse plano a máscara adotar uma espécie de transparência, não sei como isso seria possível, mas é uma ideia. As mãos da menina(com exceção dos dedos como dito anteriormente) em pontilhado ainda, com todos esses efeitos, seria como se houvesse três planos dimensionais na imagem.
BALÃO:
Saindo do garoto - "não!"
Página inteira:
Imagem de uma cruz - com a crucificação realista na medida do possível - de igreja centralizada atrás de um altar. Recordatório em um retângulo:- O peso do medo caiu sobre mim muito cedo. Tive de transformá-lo em um amigo íntimo.
Página inteira:
De mãos dadas com uma senhora de idade, a criança está subindo as escadas (novamente gostaria que fossem aplicadas as linhas pontilhadas, como em exercícios de "complete o desenho", criando uma espécie de tridimensionalidade da página com sobreposições). Eles sobem a partir do canto inferior esquerdo da página.
O mesmo altar onde a cruz está centralizada na página anterior, dessa vez visto de longe, da entrada, que é acessível através dos dois lances de escada, o da direita e o da esquerda.
A criança e a senhora adentram o espaço pela esquerda. Os dois personagens, a cruz e o altar possuem os contornos definidos, a escada, os bancos e os vitrais não. A cruz e o altar estão no centro da página.
Página inteira:
Criança e senhora de joelhos no banco, do ponto de vista da cruz.
Página inteira:
Plano detalhe no prego na mão direita .
Recordatório em um quadrado:
- Antes da dor ser diária, já sentia a irresistível vontade do autoflagelo.
Página de 9 quadros:
Quadro 1:
Criança sozinha observando da varanda
- Não sabia exatamente o que era sentir, muito menos o que sentir(sentia).
Quadro 2:
Criança sozinha observando da varanda
- Sentia? Óbvio que sim, num subnível que não saberia ainda explicar ou dar forma hoje.
Quadro 3:
Criança sozinha sentada na privada.
- Tudo que acontecia à minha volta era dogmático. Não me lembro de minha voz até ali.
Quadro 4:
Criança sozinha andando de bicicleta com rodinhas dentro de um apartamento
- A curiosidade cada vez mais presente. O tempo passava tão devagar dentro da cabeça. O amarelo das tardes parecia eterno.
Quadro 5:
Criança deitada numa cama de solteiro em um quarto que parece ser seu.
-Imaginar a lenta passagem de tempo da época me faz pensar em como começam os dias hoje. Nas sonecas pela manhã, você fecha os olhos, sonha por mais duas horas, e é novamente acordado pelo celular constatando que só se passaram cinco minutos.
Quadro 6:
Criança brincando com carrinho de fricção próximo a uma cama de casal e uma cômoda. Na cômoda existem objetos variados de costura, entre eles uma almofada de alfinetes.
- É seguro dizer que a maior parte de meus dias era imaginar, talvez seja assim com toda criança. Lógico, não conseguiria enumerar a quantidade de ideias e cenas que se passavam na minha cabeça a época.
Quadro 7:
Plano detalhe da almofada de alfinetes
- Observando esse pequeno garoto, consigo quase sentir sua angústia e inocência sendo espetadas pela crueza do real. Ganhando cor.
Quadro 8:
O garoto observa a almofada de alfinetes.
- Não sei dizer exatamente o que ele buscava, talvez seja o mesmo que busco hoje e ainda não ouso tentar descrever.
Quadro 9: Ponto de vista do garoto com uma das mãos indo de encontro à almofada.
Página inteira: Com as mãos em pontilhados no mesmo modelo das páginas anteriores de "ponto de vista", o garoto pega uma das agulhas furadas na almofada.
Página inteira: Ainda no mesmo plano com as linhas pontilhadas, o garoto espeta a mão direita com a agulha.
Página inteira: Plano com a mão aberta no centro, como se bloqueasse a imagem da almofada, uma gota vermelha brota do furo, escorre leve. Nesse plano a mão tem os ponto preenchidos por traços mesmo vindo de um pulso/antebraço pontilhado.
Página inteira: Mão fechada. Exatamente como no plano anterior, mesma posição, pulso e antebraço menos pontilhados, como se estivessem "adquirindo realidade", mas ainda parte pontos.
BALÃO vindo de fora do quadro
-Abre e fecha pra eu poder achar.
Página 12 quadros
Todos quase idênticos intercalando entre o "abrir e fechar da mão" na mesma posição e modelo da última "página inteira". Enquanto outra mão, com luvas de borracha, utiliza dois dedos no braço, buscando uma boa veia. Um elástico está apertado um pouco abaixo da linha do cotovelo.
BALÃO vindo de fora do quadro: Não precisa ficar com medo, é só uma picada de mosquito.
BALÃO vindo de fora do quadro: Achei, agora fecha bem a mão.
Obs: Nessa pagina os balões podem ser distribuídos como você achar melhor entre os 12 quadros.
Página com 9 quadros:
Quadro 1:
Sangue sendo extraído por uma agulha.
- Talvez não doesse tanto, mas a agonia era latente. Tudo muda, eu ainda não sabia.
Quadro 2:
Banca de jornal em frente a uma padaria.
- Também não questionava contanto que novos gibis fossem comprados pra mim quase toda manhã e ainda houvesse sanduíches de provolone e coca-cola logo cedo.
Quadro 3: Televisão num giro, visão passando desenho animado .
- Pensava que de alguma forma o brilho das luzes no chão encerado e o branco excessivo nas vestes de pessoas sorridentes traziam algo de novo.
Quadro 4: Uma fileira de poltronas iguais, confortáveis, parecem de couro.
- Achei que havia saído de uma rotina em que o tempo não passava.
Quadro 5: Soro pingando gotas.
- Hoje compreendo que não havia nada de novo.
Quadro 6: Braço em posição para receber injeção. Mão do enfermeiro segura uma agulha "borboleta".
Quadro 7: Sentado(quase deitado) no colo da mãe, sentada na poltrona mostrada acima. Garoto de boné toma o soro na veia: - Não percebia a familiaridade que existia, uma espécie de conforto.
Quadro 8: Luz do hospital, idêntica à das primeiras páginas do prelúdio.
- Os rostos, a luz, era tudo tão familiar, o ar seco, condicionado. Hoje entendo que sempre voltaremos ao princípio.
Página inteira: Rosto do garoto sorrindo. O rosto posicionado e com expressão quase idêntica à máscara do início do capítulo. Página inteira: Plano em primeira pessoa do garoto olhando o espelho, vemos no espelho a máscara do início do capítulo.
Página inteira: Mãos pontilhadas do garoto(ponto de vista) vão em direção a sua cabeça, seu cabelo. Vemos a imagem perfeitamente no espelho.
Página inteira: Plano quase idêntico ao da mão furada pelo alfinete. Dessa vez sem nenhum pontilhado no braço. Chumaços de cabelo na palma da mão do garoto.
Página inteira: Garoto sem cabelo sorrindo de forma plástica frente ao espelho. Página inteira: Máscara sem olhos de um garoto careca, idêntica a seu rosto, praticamente idêntica à máscara do demônio, mas sem orelhas esquisitas e sem chifres. Os buracos dos olhos vazios, uma máscara de borracha, apenas.
Recordatório na página, na mesma posição da primeira página do capitulo 1:
- A segunda máscara me foi arrancada por dentro.
*
Acordo com o canto do galo.
Crio um sem fim de histórias em silêncio, Não queria levantar nem sair das cobertas, Chão frio.
Todos dormem um pouco mais. Seguro o máximo que posso pra construir o ápice, Então urino. De propósito.
Era tão gostoso
Sentir aquele líquido quente consumindo os tecidos, Sendo chupado por eles, todas as manhãs Aderindo minha pele. Retorno à posição fetal para boiar nesse mar quente enquanto posso.
*
Me masturbei nos mais variados banheiros, da escola, do trabalho, do shopping, da casa de seus pais, enfim, em todos os banheiros possíveis e imagináveis. Era como uma competição, recorde de batismo. Gozar passou a fazer com que as caminhadas ficassem mais suportáveis, tornou os diálogos mais fluídos. Desinibiu, abriu as portas da percepção.
Fizemos sexo nas escadas do prédio de madrugada, subindo, uma posição por andar. Era fetiche somado ao desafio. Experimentamos de pé no elevador olhando o espelho e em quase todos os cômodos das casas de nossos pais.
Perdemos a virgindade juntos no terraço do seu prédio, lembra? Na verdade, no cubículo fechado que dava pro terraço. Era o fim das escadas, frente a uma porta com cadeado. Transávamos ali sempre que nos víamos. No início esperávamos o fim do expediente do porteiro às dezoito horas. Depois passamos a arriscar no meio da tarde, ficávamos amedrontados com o eco de gente subindo ou descendo nos andares inferiores, mas estávamos sempre preparados pra descer ou fingir que fazíamos outra coisa ali. Nunca nos despíamos por completo.
Não usávamos camisinha. Era sempre gostoso sentir entrar, quente e escorregadio. Continua sendo, porém a lembrança das primeiras vezes não ficou menos lúdica. No inicio era tudo desajeitado e meio apressado, mas a insistência na prática fez com que a coisa fosse melhorando. A aventura começou a ganhar coragem. Em sua casa não podíamos dormir no mesmo quarto, mas de madrugada nos aventurávamos a invadir um o quarto do outro.
Transávamos em banheiros imundos e sofás de baladas frequentadas em maior número por adolescentes com identidades falsas. Transávamos nos cinemas. Procurávamos sessões vazias em começo de tarde, de filmes já em cartaz há três ou quatro semanas. Isso se quiséssemos ir até o limite, pois sexo oral já não tinha tanto pudor, chegamos a praticar em sessões relativamente cheias de filmes infantis. Vivemos durante muito tempo nosso próprio mundo, nossas próprias leis.
*
Era uma dessas tardes entediantes de verão, Ramon pendurara uma rede na mangueira em frente à sua casa, como sempre sem camisa, com seus óculos fundo de garrafa e o violão na mão. Julio juntou-se a nós. Sentamos e falamos sobre nada, aderindo ao mormaço, até chegarmos a conclusão de que precisávamos fumar um.
O traficante que atuava na região não estava na praça onde Ramon costumava encontrá-lo naquele horário. Descobrimos que ele estava em um churrasco de noivado umas cinco quadras abaixo. Ramon já conhecia o noivo de outros carnavais, por isso não teve problema algum em entrar na festa sem ter sido convidado pra fazer o pedido chato - podíamos ter esperado? Talvez -. A "maconha soltinha", que queríamos e com que estávamos acostumados, estava em falta naquele dia, ele ofereceu pra gente o fumo prensado e uma pedra por uns trocados.
A fome já se fazia audível em meu estômago, mas missão cumprida, fumo em mãos. Agora era arrumar o lugar menos "sujeira" pra fumar naquele horário. Ramon deu a ideia de irmos para o enorme descampado do outro lado da estrada e lá fomos. Era interessante observar que a estrada criava cirurgicamente a seguinte divisão: De um lado o condomínio de prédios vizinho ao de numerosas casas, do outro o enorme descampado de terra. Uma atmosfera familiar e o vazio. Mensalmente havia uma quantidade preocupante de atropelamentos naquela estrada que não possuía passarela ou semáforo.
Na extremidade do descampado havia alguns caminhões de carga descarregando terra. A fábrica da coca-cola no horizonte ao fundo. Pensava que com o passar dos anos o enorme descampado poderia vir a se tornar um lixão. Em uma de suas extremidades acumulavam-se maquinas de lavar, móveis estraçalhados e todo tipo de sucata,
Havia montes esparsos de terra onde um pessoal treinava saltos de bicicleta. Logicamente ficamos afastados da área onde os caminhões trabalhavam e mais ou menos próximo aos ciclistas, mas longe o suficiente pra desencorajá-los a vir pedir um téco. Acendemos o baseado enrolado por Ramon com o sol das 14:30 cozinhando nossas cabeças. Esse momento sintetiza todo o tédio que corroía nossa rotina da época. Faltavam poucos dias pro natal, a recuperação na escola já havia acabado e o futuro era muito incerto. Por quanto tempo mais poderíamos estar juntos rindo histericamente com qualquer bobagem por efeito do fumo? Quanto tempo mais aquelas pessoas teriam juntas? Existiam planos pro futuro? Por que isso era tão importante?
Precisava mijar. Afastei-me um pouco deles, abri o zíper da bermuda e me aliviei num montinho de terra, o sol no meu rosto, céu azul, limpo. Senti alguns pingos voltarem no pé. Alguns metros na minha frente um ciclista descia de um dos montes tomando impulso para subir o seguinte. Observei essa subida, era rápido, ele voou. Continuou voando, em linha reta, um leve agudo se projetou em meu ouvido esquerdo. A bicicleta continuava no céu. Meu coração acelerado. Pingos nos pés, cueca úmida. Pisquei e a bicicleta não desceu. Virei de volta pros rapazes. Meu braço com espasmos involuntários, gaguejei "mi-minha bo-boca está s-s-sseca". Os dois riam, riam muito, Julio com a bituca na mão e o isqueiro na outra já queimando os dedos. Riam alto "HAHAHAHA", as bocas deles se moviam e o som chegava alguns milésimos de segundo depois, não conseguia contar, era rápido demais, mas estava atrasado! Minha garganta seca parecia fechar. Fungava pelo nariz um ar seco que não parecia ir pro pulmão. "E-eu não consigo re-re-respi-pirar" continuei. Eles riam cada vez mais alto, Ramon deixava cair um fio de baba do canto esquerdo da boca, a baba refletia a luz do sol no meu olho, lacrimejei e comecei a correr. Na minha cabeça um turbilhão de imagens, minha morte era anunciada na TV, pelo William Bonner, por mais ridículo que isso possa parecer agora, no momento parecia real. Eu corria e gritava "EU TÔ MORRENDO, MEU CORAÇÃO!". Não gaguejava mais. Corri em direção à estrada, vindo do outro lado dois caminhões também se dirigiam pra pequena subida que dava na estrada.
Olhava pra trás a curtos intervalos e os dois rapazes continuavam rindo apontando pra mim, iam em meu encontro, tentavam correr, Ramon tropeçou e caiu de joelhos rindo alto demais, eu não queria mais ouvir, mas estava dentro da minha cabeça. Sozinho, estava tão sozinho, acho que poucas vezes na vida me senti tão sozinho. A seriedade do momento era tamanha, era um corte brusco na minha vida, entre a familiaridade e o vazio. Os caminhões chegaram um pouco antes de mim na subida, o primeiro virou pra esquerda na estrada, o segundo parou no aclive e ficou esperando o fluxo. Corri até lá, parei bem atrás dele.
Uma mão no meu ombro, Ramon. A expressão de risada se esvaindo em fade-out, a face vermelha se tornando branca, "Calma cara", ele me disse seguido de um soluço-riso. "Me ajuda" respondi, " Reza comigo".
BRRRHHNZ, é o mais próximo do som que ouvi, o caminhão derrapou e foi pra trás. Só tive tempo de virar pro lado, foi coisa rápida, milésimos de segundo, eu vi a caçamba dele indo de encontro ao meu rosto.
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------Bati a testa na parede baixa ao pular o lance de escadas, meu corpo se moveu noventa graus no ar alavancado pelo ponto de atrito entre minha testa e a parede de modo que estava deitado no ar, prestes a virar um mortal pra trás, mas antes disso meus pés encontraram outra parede. Bati as costas no chão, queixo grudado no peito. Minha cabeça ficou poucos milímetros do primeiro degrau da escada. Não senti nada, não me lembro de nenhuma dor significativa. Poderia dizer que foi alguma espécie de milagre, era um lance curto de uma escada em ziguezague que dava no meu andar, cerca de um metro da porta de casa. Os garotos ficaram muito sérios por alguns segundos, dava pra ver a catástrofe no rosto deles, mas tudo sumiu quando levantei e ri. Voltamos ao objetivo, acompanhar da sacada do meu andar(apagamos as luzes do corredor) os caras do prédio vizinho, que estavam andando pelados no apartamento, dois gordos, cozinhando e bebendo pelados, com as cortinas abertas. Não demorou muito para sermos notados. Um deles com expressão de vergonha fechou as cortinas. Não mais do que duas semanas depois, eles se mudaram dali. Nunca mais vi ninguém no apartamento.
Meu aniversário foi na semana seguinte, roubaram meu CD do Oasis, deixaram a capinha. Eu sabia que tinham sido o Valter e o irmão mais velho dele, Diego, mas não tinha como provar e eles nunca admitiriam. A mãe deles era muito bonita, estava sempre com o rosto corado e a fala arrastada como quem bebe com muita frequência, mas eu não fazia essa relação na época. A casa deles não cheirava muito bem, fui algumas vezes lá jogar videogame. A mãe dele sempre fazia mingau de aveia pros filhos, nunca oferecia.--------------------------------5556------eeee--e-eeeeeeeeee--
Fui puxado no último segundo por Ramon e só senti o vento na orelha. "Cara, você quase morreu", ele disse , rindo.
De alguma forma, falar sobre o caminhão que quase me pegou na testa e sobre a queda ao pular da escada e bater a testa na parede baixa me remeteu a uma terceira cena:
Três crianças resolvem ter uma fantasia propícia ao RPG de mesa que jogavam e sarram uns nos outros trocando os papeis sexuais periodicamente, sempre vestidos, roçando e imaginando. Os pequenos pênis eretos dentro de suas calças. Que explicação dar a isso? A faxineira estava na casa no dia e acabou flagrando a cena, Disse ela com desdém: "Como pode né? Um garoto tão bonito, viadinho." Ela se referia diretamente a mim e não aos filhos dos patrões.
Era domingo, voltei pra casa e assistimos à banheira do gugu.
*
"They shouldn't behave like tourists who want every object explained to them, every old temple, every ruin. They should just listen and then discover or feel what it does to them. And then, little by little, try to remember what it dit last time and then approach it in a different way; and not start too early to put it into words, but listen innerly to the vibrations inside the body, what it does to them. That's the best thing. And that's why literature about or accompanying music should eliminate more rather than add - it should make the people fresh and empty."
*
Naquele dia eu bebi. Não lembro quando parei. As situações foram apresentando-se numa velocidade tão grande que não demorou para que parecessem cinco ou seis vídeos sendo executados ao mesmo tempo em abas diferentes numa janela com doze. Sons embaralhados. Demoro um pouco pra achar as abas corretas.
Falei seu nome algumas vezes, sei disso. Não é estranho? A gente nem se conhece. A primeira vez que te vi foi numa mesa de bar, conheci muita gente esse dia que só havia tido contato virtualmente, incluindo você. Fiquei com um frio na barriga e mal conseguia olhar nos seus olhos, não por falta de vontade ,mas por não saber de que cor eu iria ficar e por não querer gaguejar. Nossos olhares até se cruzaram algumas vezes naquele dia, sempre rápido. Você ficou com algo que era meu.
Em outra ocasião, fiquei novamente bêbado e também preferi não falar com você. Você estava distante com uma expressão de cansaço, levantou o braço esquerdo pra coçar a nuca, vi os cabelos alinhados em sua axila e comentei com a pessoa sem rosto ao meu lado "ela é tão bonita...". A chuva caiu, me senti parte de algo, a roupa grudando na pele, frio.
As pessoas em volta mostravam seus melhores sorrisos, eu apenas subia os degraus, elas conversavam enquanto eu me reservava a não falar absolutamente nada. Procurei uma luz qualquer que não me desse náusea, que trouxesse consigo conforto. A fumaça me tragou, estava respirando pela boca. Sentei, conversei com uma amiga sobre os desprazeres da vida, sobre os desencontros e sobre as fatalidades.
Já é outro dia e você continua distante. Ao clique de uma aba.
A infância que me foi roubada urra, eu grito junto. Sinto falta de fantasiar sem medo do ridículo. A imaginação sempre foi meu refúgio. Bebo o último gole do copo, ainda está gelado. Lá fora os postes continuam acesos e fora de foco.
A terceira vez em que nos encontramos estava escuro. Os shows foram barulhentos. Quando percebi, estava no banheiro assistindo à obsessão tomar conta de mim através do espelho.
Deitado olhando o ponto exato onde as paredes e o teto se encontram, percebi as sombras abraçando o entorno conforme o sol se despedia, latidos esganiçados dos cães lá fora, a luz excessiva do laptop queimando minhas córneas enquanto o próprio, carregando na tomada, fazia o mesmo com minhas coxas. Esperava uma mensagem, uma lembrança. Quase todos os dias tenho tentado te mandar algo, seja um vídeo, uma frase, um texto. Algo que possa servir pra gente conversar, pra gente trocar alguma coisa. Tudo que tenho são fotos suas que você nunca vai saber que salvei, seus olhos grandes sem querer me dizem tanto. Espero, horas a fio, pela emoção de ver o seu nome piscando. Já se passaram dois dias, mal percebi. Sinto-me ridículo por desejar ter tirado aquelas fotos de você dançando no metrô. Por querer que você sinta de alguma forma minha falta, falta de alguém que definitivamente não significa nada, é ridículo, eu sei.
Procurei conferir alguns dos trabalhos sobre os quais você escreveu com tanta paixão, certa madrugada você fotografou páginas de um pra mim. Eu quis saber mais a respeito, procurei, achei e comprei um dos livros. Paguei um pouco mais caro pela versão física. Quis segurar em minhas o mesmo peso que você.
*
Vez ou outra você irá se lembrar do que foi legal.Os espaços serão novamente preenchidos pelo peso irrefreável da realidade. A vida segue independente de qualquer falta.E a falta some como a fumaça do cigarro, se dissipando no ar.
O cheiro fica no cabelo e nos dedos, mas você não sente.
*
A cada dia a mancha negra cresce no canto do box. O fundo da privada tão negro quanto. A descarga tem que ser apertada com cuidado pra não emperrar.
"Quanto tempo até o limo tomar tudo?",
Ele pensa observando o fundo da pia escurecer enquanto cospe.
*
Difícil manter-se frio ante um mundo que se apresenta quente por todos os lados, seja no atrito do vagão lotado com o ar condicionado desligado, no choro de um cachorro recém atropelado mancando pela rua ou na expressão de fome de um pedinte. Ainda derretemos ante a fra(n)queza exposta do próximo. Espelhos de carne.
*
"You should thank the God for making the weather so nice today. People's fates can change just like the weather, you know?"