Depois de tantos anos, já não faço mais parte desse mundo. Não é o meu mundo. Não consigo me adaptar a certas mudanças. Ainda mais agora depois que meu companheiro de tantos anos se foi... Vejo os contemporâneos morrendo um a um e os que ainda não morreram não se lembram de mim. Sou uma das últimas ainda a ir na feira com meu carrinho de mão. Não recebo tantas visitas quanto gostaria. Não me lembro tão bem de detalhes, já esqueço o que comi no almoço. É difícil, queria que estivessem todos aqui. Não quero também atrapalhar a vida deles.
Deram-me esse celular. É difícil escrever nele, meus dedos são um pouco gordos, apertam duas ou três letras ao mesmo tempo e as palavras ficam se corrigindo sozinhas pra outras que não são as que estava tentando escrever, mas a gente vai tentando.
Mantemos contato através de fotos.
Gosto de ver eles todos sorrindo por aqui. Nunca me sinto à vontade quando vejo a pergunta "o que você está sentindo?", ou "o que você está pensando?", algo assim, no face.
O legal é conhecer pessoas de longe. Posso até, quem sabe, arrumar alguém que ainda me queira.
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Penso o dia inteiro em colocar as ideias no papel.
Muitas delas chegam e entrelaçam-se em minha mente numa velocidade absurda.
Fazem-me rir, chorar, achar uma ligação entre cada cena.
Vão acumulando a tal ponto que perco tudo num imbróglio caótico. Uma mancha disforme multicolorida que gira mesmo quando fecho os olhos. Depois de um tempo, de tanto girar e tão rápido, o que fica é um todo opaco, uma pedra enorme cheia de pequenos furos.
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Porque é tão difícil começar? Tirar a roupa, olhar no espelho, ler o que escrevo pra mim mesmo sem pudor, sem forma, direto. As ideias parece que são chupadas pelo ralo junto com os cabelos, mortos. Andar sem rumo pela cidade como Punpun em busca de Aiko. Quem é ela? Já teve tantos rostos. Hoje seus cabelos são encaracolados e só nos vimos duas vezes. Trocamos algumas milhares de letras em tela e palavras ouvidas não passaram de vinte.
Notei sua presença assim que chegou, foram poucos segundos em que não vi nada, não vi quem você é, nem sei quem você quer ser.
Apenas faíscas, cinzas são o que observamos pelo chão conforme batemos o cigarro.
Certo dia não te achei mais, digitei seu nome na busca e nada. Dezenas de pessoas com o seu nome apareceram, fui até a terceira página. Nunca usamos o telefone, também nunca trocamos números. O alcance do clique era um conforto a qualquer hora da noite e do dia. Não mais. Você desapareceu. Sua imagem sumiu do histórico de conversa, não há onde clicar.
Morremos um pro outro.
Anos atrás deixei sua casa, tomei as escadas ao invés do elevador, pois não queria o espelho. A imagem do seu olhar triste persistia, assombrava-me cada vez que piscava os olhos, como que gravada pela luz, dessa forma você me acompanhou pela rua, sem me dar a mão, naquela tarde ensolarada em que me tornei outrem. A imagem está aqui até hoje, consigo ouvir até o som da porta se fechando.
Sua presença sempre será sentida, é indubitável sua participação na minha formação como pessoa. É assustadora sua presença em quase tudo que aprendi a gostar, coisas que descobrimos juntos.
Cortar o cordão é pura ilusão. Dor fantasma. Diálogos internos e adivinhação suplantam qualquer tentativa de ignorar ou fingir que não se viu. Você vai estar sempre conversando comigo na areia gelada da praia, sorrindo. Estará sempre chorando enquanto recebe sexo oral na sessão das 14 horas de Happy Feet, o pinguim. Será que ainda olho pro céu nas mesmas horas que você?
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Cheguei de madrugada, cansado. Havia uma mensagem sua, nunca te vi, você havia me visto em algum lugar e ultrapassou as barreiras que só eu enxergo. "Oi", você também dizia estar bêbada, seus cabelos cobriam seu rosto na foto, seu nariz era pontudo, seu pescoço magro. Pálida como uma folha de papel. Queria que tivesse sido diferente, lembrei-me de alguém que queria que fosse você, talvez fosse, algumas horas antes trocamos um olhar perto da escada, rosto pálido, olheiras, a lembrança é muda, sua boca apenas mexe, a minha também. Gostaria de saber sobre o que te incomoda e por que não tem dormido bem. Gostaria de ouvir sua voz balbuciando qualquer coisa sem sentido baixinho pra não acordarmos.
Muitos tempo depois, fui ouvir sua voz. Também era uma mensagem.
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Naquele dia eu estava disposto a beber até esquecer por completo, tudo havia dado errado, eu andei sozinho por muito tempo, queria rir, queria falar o que desse na telha, queria esquecer. Percebi que só eu queria beber, tive também a impressão de que era o único desconfortável. Por alguns segundos, ficou claro que tudo ao meu redor era superficial e alheio no que diz respeito a minha presença. O mundo realmente não pararia de girar se eu sumisse. Ficou claro que não havia proximidade ou carinho em ninguém ali. Não direcionado a mim.
O palco estava montado e sobra sempre o papel do excesso. Todo lugar é esse palco.
Joguei-me de cabeça nessa situação, quis que as lembranças
desvanecessem , quis rolar escada abaixo derrubando quem estivesse subindo, quis a vergonha, a vergonha que acompanha cada palavra que tento lembrar abaixo sem conseguir.
Vergonha de vestir cada fantasia que cultivo no meu lado mais escuro, a ponta do iceberg que só consigo intuir.
Vão embora, vão embora. Mais um copo, desejos reprimidos, auto-destrutivos, não morro, não consigo, lampejo de amizade, sombra de uma figura próxima, de carinho, o mais limitado possível.
Não sei como voltei pra casa, acordei no elevador, vômito na camisa, deixaram-me aqui, nada além.
A porta pesadíssima, a escada em espiral logo em frente, cambaleei rumo a ela mais por acidente do que por intenção. Descer girando e quebrar o pescoço seria o ápice, mas cai um pouco mais para a esquerda, desacordei até o sol cutucar minhas pálpebras algum tempo depois.
Continuo vivo, alguns quilos mais leve.
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Você sussurra nos meus ouvidos quase todo dia, dormir ouvindo e vendo você mexer nos pincéis é um vício. Na verdade nunca durmo no processo, mas me encontro num estágio de relaxamento do qual não desejo sair. Os supracitados arrepios ou tingles já são poucos, admito. As luzes, o brilho, parecem ser o segredo, mas não saberia dizer ao certo. O fato é que engulo o conjunto. Engulo como engulo também a moça cujo dildo ou calcinha vibra forte a cada gorjeta. É tudo seco, inodoro, não tem suor que não seja o meu, não tem hálito desagradável, praticamente não existe. Plástico, látex, conforto do toque, limpeza, ambiente hospitalar dos mais caros, sorrisos.
Apenas prazeres mundanos e o ar condicionado secando qualquer secreção deixada nos lençóis.
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Olho nos seus olhos, vejo luzes, luzes fortes e brilhantes, vejo sua pele sendo preenchida por essa luz e pelo pó. Vejo sua boca vermelha, pintada. Os detalhes preenchidos pela luz, fascinante! O ideal de um anjo, cheio de mistérios. Sua voz baixinha, da esquerda para direita, não sinto o cheiro, não vejo o que está atrás da câmera, atrás do pequeno cenário inócuo.
Imagino seus problemas, seus anseios. Queria saber como foi seu dia também. Você não quer saber como foi o meu de verdade.
Não, não é insegurança minha. Eu acho que você não suportaria. Eu tentei te mandar alguns emails pelo seu contato na descrição. Você respondeu o primeiro de maneira genérica, fria, mas sem perder os trejeitos de uma suposta simpatia controlada. Não pode destratar os seus assinantes, não é? Não prosseguimos a conversa, você não respondeu a tréplica, sei como deve ser estranho uma pessoa aleatória te mandar mensagens querendo saber da sua vida, aliás, imagino que deva ser bem comum por aí. De alguma forma, o convívio diário com o seu canal e as suas perguntas me fizeram querer perguntar também. Imagino que as pessoas devem construir algo platônico, te assediar aos montes em privado, muito mais do que já fazem nos comentários.
Talvez eu também tenha construído algo platônico. Apesar de não achar que faço nada parecido, percebo que acabo preenchendo as lacunas a seu respeito com pura idealização. Querer retribuir de alguma forma o cuidado que você finge ter comigo (conosco), tocando a tela com seus pincéis, sugerindo que me deite enquanto você mastiga uma banana. Eu gosto disso, agora não é verdade quando você pede pra fechar os olhos, né? Posso estar redondamente enganado, assumindo um discurso horrível, mas tudo me leva a crer que você não se maquiou assim pra gravar, com toda essa luz em você, com a intenção de que a gente pare de olhar.
Sabe, isso deve fazer algum bem pra você, muito mais do que imagina fazer pelos outros. Não consigo engolir essa ideia. E eu não preciso engolir ou regurgitar nada, eu sei. Só estou escrevendo, pensando alto. Não vejo nada de diferente e beatificado em você que não veria em uma menina que cobra pra ficar pelada e se masturbar em outros sites. Isso não é um insulto, longe disso, mas as vezes parece que você insulta essas outras meninas com alguns comentários. Como se o seu trabalho tivesse mais valor que o delas. Percebo que você se esforça demais pra não ser confundida com esse outro "tipo de pessoa".
Pode ser só uma impressão ou uma perversão minha , mas, enfim, você não vai responder essa mensagem mesmo, então é isso. Foi sim um dia cansativo como você falou, bebi um pouco além pra ver se esquecia de todo o resto. O mais próximo que cheguei de alguém já tem tanto tempo. Não digo fisicamente, consigo pelo menos duas vezes por semana ir pra cama com alguém, às vezes não demora três dias pra eu esquecer o nome, falo sobre proximidade real. Sobre conversar, mesmo.
Eu machuquei a última pessoa, também me machuquei. Tentamos fingir por muito tempo, passamos por cima de tudo, passamos por cima de nós mesmos. Seria esse mesmo o caminho? Temos que aprender a fazer isso, endurecidos? Não entendo por que temos que cortar todos os laços que fazemos com verdade. Não entendo.
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Estivemos nesse teto por alguns anos, dormindo sob ele. Choramos, gritamos, carregamos um pouco um ao outro(um do outro). Não nos falamos mais. Nunca mais nos olhamos. Sou um grande idiota, nunca valorizei nada. Muito menos a mim. Não sei como consigo dizer que amo pessoas. Meu maior receio é que, no íntimo, nunca tenha amado ninguém. Que seja apenas um babaca utilitarista, verdadeiro parasita de tudo. A frieza que imputam a mim ouvi dizer que herdei de meu pai. Mal o conheço, mas sei que ele se valoriza bastante, pude constatar.
Durante muito tempo tive dificuldade pra dizer que amo minha mãe. Hoje consigo, pelo telefone. Só não consigo dizer que sinto saudades com a sinceridade de que gostaria.
Dói. Paro pra pensar e não consigo negar sua importância. Não consigo deixar de desejar que estejas bem por mais que nunca crie coragem pra dizer-lhe isso novamente.
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Você me responde quando faço o pagamento. Eu gosto dessa brincadeira, é muito bonito assistir você gemendo, a interatividade me excita, mas sou esse "cara estranho"(e chato?) que quer que você fale mais sobre seu cotidiano do que assistir você gozando.
Ok, pode ser porque eu já participe disso aqui há muito tempo e me sinta mais íntimo do que deveria. Teria eu esse direito, como apoiador assíduo? Espero que sim. Eu posso comprar um pouco da sua intimidade? Ou sei lá, você poderia fingir que se importa se eu der mais uma gorjeta? Seria legal. Eu não estou em hipótese alguma te vilanizando. Admito sem pudor. Acho que posso falar sem rodeios com você, como era com meu terapeuta - mas considero esse dinheiro melhor empregado . Não me importo muito com você na verdade. Acho que não, é só uma curiosidade vil, quero saber se você é tão fodida quanto eu. Da cabeça. As vezes consigo me identificar com seus olhares, geralmente nos momentos mais estranhos, provavelmente nos momentos em que você esquece de tudo, no caso, esquece de performar esse personagem, ou o que julgo ser um personagem que você criou. Não sei se dá pra explicar assim, escrevendo. Mas é quando interpreto que cê não está fingindo. Pois é, quando você chega lá se masturbando(ou consegue me enganar muito bem). Já consegui sincronizar esse ato algumas vezes aqui. É o máximo de intimidade e comprometimento que teremos provavelmente.
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Nunca me senti muito à vontade falando, no divã foi a mesma coisa, difícil falar.
Desenhar, escrever, ler, sempre foram atividades mais simples que incorporei como depósito de minha introspecção. Escrevi muitos textos ruins, textos labirínticos de uma adolescência errática, usufruí de alguns cadernos onde escrevia pseudo-memórias. Na verdade, ficções baseadas em meu dia a dia. Muita mentira, pitadas de verdade, fatos floreados e aumentados. A vida que queria ter quando conheci o mínimo da marginalidade. A distância que estive de casa nessa época ajudou.
Um principio conturbado de adolescência levou-me a querer conhecer familiares que nunca me foram íntimos. Um deles, uma moça, casada com um tio, lia meus cadernos em segredo quando eu dormia.
Não sei bem como isso começou, sei que descobri que ela andava lendo quando esse meu tio veio perguntar a respeito da hora que cheguei em casa certo dia específico com perguntas que me remetiam a um dos contos que escrevi num caderno. Ele me informou sobre a leitura que ela fazia, tentei tranquiliza-lo dizendo que eram só histórias. Não sei se ele comentou com ela que havia me contado, prefiro crer que não. Passei a exagerar ainda mais nessas ficções. Foi engraçado perceber nos olhos dela que ela acreditava em tudo que eu escrevia, verdadeiros disparates depravados regados a drogas e sexo.
Eu não tinha nem dezoito anos. Não muito tempo depois resolvi rasgar e jogar fora os cadernos, não tornei a escrever em punho.
Ela faleceu há alguns anos num acidente de carro, imagino que ainda acreditando em meus cadernos.
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Vi a morte pela primeira vez sentado próximo ao meio fio bebendo vinho barato e fumando cigarro mentolado. Já passava das 21 horas, uma curva fechada se projetava à direita em uma avenida de mão dupla. Jovens aparentemente felizes falavam merda, rindo. Dois deles atravessaram a rua e pararam no meio, esperando os carros. Pude ouvir com clareza um deles gritar:
- Vou atravessar na frente do ônibus!
O ônibus brotou da curva e ele viu. Ele disse que viu.
Esse ônibus foi a foice.
Lembro-me de vê-lo ser atravessado, transformando-se numa espécie de vulto, como que perdendo qualquer sinal de rigidez a partir do ombro e perna atingidos. Ele girou de uma forma que não consigo descrever, as cores de suas vestimentas se fundiram. O que pude ver nesses milésimos de segundo foi algo entre a idealização de uma alma enfumaçada e de sacola plástica ao vento. Passou por debaixo da roda dianteira e continuou girando por cerca de cinco metros na escuridão do asfalto, pintando-o. Tudo ficou suspenso por um instante. Não houve som além de um esboço de grito que se fundiu a freada.
Silêncio abrupto,
Tremi da cabeça aos pés.
*
Eu brigo muito comigo mesmo pra não reconhecer minha solidão.
Obviamente só a percebo quando não tem ninguém ao redor, quero dizer, quando ninguém me escreve e não escrevo pra ninguém.
Como agora.