A proximidade com a respiração, os olhos. O toque, principalmente o toque, elevaram isso a um patamar inesperado. Não me trouxe nenhuma compreensão. Não me fez mentalizar nenhuma certeza, não havia uma imagem concebida da pessoa que estava em minha frente, mas sim um mosaico de sobreposições que se somaram a inadvertidas possibilidades apresentadas, pela primeira vez, ali. Estávamos com nossos amigos em comum, fomos comer, beber, nos divertir um pouco. Falamos trivialidades, todos juntos. Em algum momento, ficamos a sós. Ou pelo menos assim pareceu. Descobrimos coisas em comum sobre trabalho e também que cultivamos gostos diferentes para mulheres, homens e sexo. Rimos um bocado de piadas peculiares. Era hora de ir embora, o Uber chegou. Um último abraço. Frio no estômago, apertei muito mais do que devia? Não sei, mas também me senti apertado, sufocado por dentro, pela vida, pelo tempo, por tudo. Foi o suficiente pra parar o tempo? O frio no estômago subiu até a boca e gaguejei, "fi-fica?". Nossas bocas se encontraram nesse momento, muito rápido, uma explosão de energia. Muito, ao mesmo tempo que tão pouco.
Surpresa. Você ficou, e a gente foi andando pela rua escura no meio da madrugada, falando besteira. Um dia como esse, diferente de todos os outros, umdiaquasesonho, em que impossibilidades e o mosaico de possibilidades se transformaram numa única mandala coexistindo no plano real. Reflexo de vidas trancafiadas engalfinhando-se numa tentativa rudimentar de liberdade. Minha boca encontrou a sua outra vez, quente, sua saliva e língua com gosto de álcool, seu pescoço suado, levemente salgado, delicioso. Quando ia beijar seu mamilo ereto, encontrei seu pulso na frente, e logo o outro pulso, beijei ambos, beijei e lambi sucessivas vezes, conforme você os colocava em minha frente, um depois o outro, você tremia a cada troca, parecia gostar muito, no pulso, nas mãos, nos dedos, nos braços. Mordi e cheirei, suas axilas com cabelos finos exalando um leve e gostoso odor de suor. Muito próximo ao cheiro do seu sexo. Esfreguei o nariz em seus cabelos pubianos, quis morar ali e lamber até você encontrar tudo que queria. Precisei desesperadamente te fazer feliz.
*
Eu grito, grito o mais alto que posso. Mas como um passarinho recém saído do ovo, não há som, não emito som algum, olho para mamãe, ela sorri ao meu lado e sua mão direita tapa meus olhos. Minha garganta queima, sinto gosto de sangue, sinto meus ossos estalarem dentro de mim, não consigo me mover. A mão que venda meus olhos se foi, posso ver as cadeiras com pessoas sentadas nelas, mas nenhum rosto. Velas no chão iluminam pés descalços, túnicas amarelas, véus e cadeiras velhas. Mais à frente, vejo a árvore imponente por detrás da janela. Todos ao redor tiram suas túnicas, um cheiro estranho invade minhas narinas, sinto-me anestesiado, enquanto os observo fazendo cortes em suas próprias mãos e esfregando seus cortes nos lençóis claros que me envolvem. Eles despejam gotas de sangue em um cálice no chão. Mamãe coloca o líquido do cálice na boca e parece gargarejar, eu não consigo falar até que ela me pega pelos braços e, através de sua boca, deposita aquele líquido em mim. Consigo agarrar seu seio esquerdo e, por alguma razão, uma raiva enorme me faz torcê-lo para a esquerda.
Escancaro a porta do meu quarto, ouço gritos. Vejo meu padrasto no chão e mamãe com uma garrafa quebrada prestes a enfiar em seu rosto. Pulo em cima dela e grito "Pare por favor!". Meu padrasto nos empurra, a garrafa quebrada voa para um canto. Eles continuam a se bater, sinto medo de que se matem, abro a porta do apartamento, grito por socorro no corredor com a esperança de que o eco traga todos até mim. Imploro para que chamem a polícia. Não ouço nada, não existe som. Só um vácuo em que gostaria de permanecer deitado pra sempre, observando o soro, gota em gota, entrar por minhas veias, enquanto pessoas de branco mexem em instrumentos metálicos ao meu lado numa sala perfeitamente branca.
Desperto e levanto, cambaleando, esfregando os olhos. A porta aberta, uma aranha negra parada logo na entrada, de alguma forma sinto e tenho certeza de que ela e os cachorros estão chamando-me, resolvo segui-la. Atravesso o carro e o portão dos cachorros que pulam e latem, desesperados pra sair. A aranha virando a cada esquina como se tentasse me apressar, poderia jurar que ela sorria pra mim. Acompanhando-a como possível, saio pelo portão da frente da casa e dirijo-me a casa vizinha. O portão está aberto, a porta está aberta. Atravesso todo o corredor escuro até a porta dos fundos que também está aberta. Observo a boca da árvore pedindo socorro, uma lágrima cai dos meus olhos. Compreendo tudo, sinto sua boca crescer e fico maravilhado com a escuridão perfeita que existe dentro dela, deixo que me engula. Sinto na pele todos os latidos e uivos agora, sinto cada um dos avisos como um frio no ventre.