Ele se foi. Já não conseguia levantar. Dizem que morreu no esforço de tentar impedir que os enfermeiros o levassem, não queria ir, lutou até chegar à ambulância. O coração de 86 anos não aguentou. O fedor no quarto era insuportável e assim continuou por pelo menos dois dias antes de alguém criar coragem para ir limpar. Já fazia alguns anos que a incontinência urinária deixava um rastro por onde quer que passasse. Seu colchão parecia ser a origem/concentração de tudo. Sua sombra estava impressa nele. Os banhos mal tomados com sabão de coco eram insuficientes e ele se dizia muito homem pra usar xampu ou qualquer espécie de sabonete que não fosse o de coco, assim como perfume e desodorante "eram coisa de mulher", dizia. Imagino que pensamentos similares justificassem a não higienização de suas partes íntimas. Fato é que o cheiro o precedia. Um odor ácido de urina e suor que penetra nos mais profundos recôncavos da alma quando aspirados. O odor esteve com ele desde que me entendo por gente, a memória viva mais antiga data de décadas atrás, eu tinha menos de dez anos. Era o mesmo odor, em menor intensidade. Chegou até minhas narinas quando, a caminho do banheiro, passei pela primeira vez em frente a sua suíte escura, no fim do corredor, em um dos raros dias em que deixava a porta aberta ao sair. Talvez fosse imaginação infantil, mas não me sentia à vontade tampando o nariz, era arriscado aspirar acidentalmente aquele odor pela boca, a sensação de estar engolindo aquele azedume, aquela aura mefítica, era ainda pior do que o registro do cheiro. Para ele, ventiladores eram um absurdo, coisas antinaturais, detestava. Ar condicionado, pior ainda, invenções blasfemas que faziam mal. Só era válido o vento mandado por São Pedro. O quartinho onde habitava, na casa de meus avós em uma pequena vila no subúrbio do Rio de Janeiro, vivia quase sempre fechado, ele dizia ouvir barulhos durante a madrugada, tambores e gritos, cismava ser o som do terreiro da última casa nos fundos da vila que já não estava em atividade há anos. Esse era seu motivo pra manter tudo fechado durante a noite. Durante o dia, mesmo com o calor do verão transformando a casa e o quartinho em um verdadeiro forno, ele abria no máximo uma minúscula fresta na janela. Passei a infância pensando, no auge do meu egoísmo, que isso era até bom, pois diminuía o fedor, evitava que vazasse, como se fosse um gás! Afinal, o pequeno quintal onde as roupas eram lavadas e estendidas dava pra janela do quarto dele, que por sua vez ficava ao lado da porta da cozinha, que permanecia aberta durante o dia, e não me parecia seguro deixar que "aquilo", seja lá o que fosse, se misturasse à comida. Questionava-me o quanto aquilo poderia estar afetando-me. Durante as férias, quando era deixado na casa aos cuidados de meus avós e a internet ainda era um sonho distante, passava as primeiras horas da manhã assistindo às extintas faixas de desenho animado na TV aberta. Nos intervalos entre os desenhos, ficava mudando os canais e ia parar nos de culto religioso que falavam sobre espíritos obsessores e curas para todos os problemas financeiros e mentais. De alguma forma, isso alimentava minha imaginação sobre aquele senhor. Você deve estar pensando, "porra, que criança má! Não nutria um pingo de empatia pelo pobre idoso". O fato é que, naquela época, não nutria mesmo. Ele foi um personagem assustador na minha infância. Toda manhã saia de casa com as mesmas "roupas de sair" e voltava bêbado, adicionando uma nova camada ao fedor, o cheiro de cachaça e comportando-se de forma agressiva com o resto da família. Quando bebia pouco, eram apenas comentários ácidos, irônicos, passava deixando no ar, junto com os odores. Sua maldade tinha cheiro. Quando bebia o suficiente, falava gritando, era das poucas vezes que deixava o quarto entreaberto, pra falar "sozinho" certificando-se de que todos ouvissem. Nos dias em que o teor alcoólico chegava no limite, ele me dava empurrões sempre que podia, quando passava próximo à minha perna, enquanto sentado no sofá, fazia questão de esbarrar com o joelho, de fazer gestos e tentar me puxar quando ninguém estava olhando. Sempre com a cara mais carrancuda possível e ele já não era um senhor muito bonito, nunca foi. Nesses períodos mais extremos, também demonstrava verbalmente certas obsessões sexuais com as mulheres da família, comentários de baixíssimo nível. Como já era idoso, ninguém dava muita importância, era apenas um velho doente e bêbado. Ele, meticulosamente, evitava esse comportamento perto de qualquer homem adulto da família, era algo que só eu, como única criança, e as mulheres conheciam, de fato. Quando entrava naquela casa durante o inverno, com meu nariz quase sempre entupido pela rinite, era difícil não respirar pela boca. É possível que tenha absorvido muito mais dele do que gostaria. Temo que seu gás mefítico tenha me consumido por dentro, proliferado. Já deve ter ficado claro que ele foi um alcoólatra do tipo violento. Ficava violento e implicante. Já me enxerguei algumas vezes naquele personagem, em eventuais excessos de álcool ao longo da vida. Algo que nunca me agradou e muito menos aos que estão em volta. Foram muitas histórias de violência psicológica e ocasionalmente físicas causadas por ele ,em seu alcoolismo, a mim e a pessoas próximas, desde pequeno. Parece uma falha terrível sentir-me, mesmo que infimamente, próximo a repetir atitudes do nível ou num caminho que possa me levar a isso. Um terror guardado no bolso, sempre presente no esforço para ser ignorado. Para católicos praticantes e dedicados, como meus avós, ele devia ser uma espécie de cruz a ser carregada. Após o falecimento de seu irmão, coube à esposa, minha avó, assumir o fardo. Ele foi ficando, e ainda permaneceu por um bom tempo. Tanto tempo que passou a ser uma companhia importante para ela, principalmente depois que não aguentou mais beber, e isso não aconteceu antes de ser alertado pelo restante da família que teria de parar ou procurar um lugar pra ficar por conta própria. Nem por isso ficou menos tóxico, mas era alguém que esteve lá desde sempre, que compartilhava o mesmo mundo e referências muito mais próximas dela do que o restante dos familiares, todos muito mais jovens. Ele criou raízes fortíssimas naquela suíte que passou a deixar com cada vez menos frequência, exceto para ir à cozinha, comer e beber água. É difícil entrar lá, mesmo hoje, já passado algum tempo, e não sentir uma pontinha daquele odor ácido. Uma presença sensorial, talvez até mais presente na imaginação do que em qualquer outro campo. Eu ainda vou visitar minha avó com frequência, sento no sofá e fico ouvindo ela contar as mesmas histórias, as vezes três ou quatro vezes na mesma tarde, sem se dar conta da repetição. Nos seus últimos anos, ele também fazia isso. Parece que ficava feliz quando aparecia uma visita qualquer. Ostentava um sorriso sem nenhum dente. Eu procurava não fazer muito barulho para ele não aparecer, aproveitando que era meio surdo, mas, mesmo assim, ele sempre percebia que tinha mais alguém em casa. Então saia do quarto arrastando as sandálias, trazendo consigo o cheiro que era cada dia pior, pra contar histórias, entre elas piadas racistas e homofóbicas de péssimo gosto, ele não se importando se eu estava rindo ou não. Por algum motivo, eu não o interrompia, deixava ele falar, rir frouxo com a boca banguela, divertir-se à sua maneira, eu ficava lá, sentado, com as pernas cruzadas, ignorando o odor, olhando-o nos olhos e escutando ele repetir tudo semanas a fio, absorvendo-o. Em sua cabeça, era um absurdo o Brasil ter uma presidente mulher, e ainda mais de natureza hispânica e também uma governadora americana, dos Estados Unidos, tava tudo ruim por causa dos Estados Unidos. Ele conseguia falar com os animais, como São Francisco de Assis, conversava com os passarinhos presos em gaiolas minúsculas na cozinha. E todos os nossos problemas começaram quando o homem passou a tentar ser Deus, a mexer com a lua. As chuvas e o mar estavam dando a resposta que o ser humano merecia. Outro grande problema é que passaram a inventar religiões que não eram a católica, do criador, que veio de Jerusalém e Portugal. O Brasil era a maior potência do mundo, que botou o cara do bigodinho ridículo pra correr. Enfim, uma narrativa criada por ele ao longo da vida e a partir de apreensões do radinho de pilha que colava em um dos ouvidos quase surdos. A experiência de passar muitas horas, até mesmo dias, dentro de um quarto escuro, só sair pra ir ao banheiro e comer, acompanha-me. Pode-se dizer que me enxergo nele quando me dou conta. Posso mascarar dizendo que é meu modo de trabalhar, etc. Mas pode ser que haja muito mais aí. Sim. Após sua morte, nossos familiares postaram fotos em suas redes sociais com os dizeres "vá em paz", "descanse em paz", "fique com Deus", "que Deus lhe guie em sua passagem", entre outras similaridades. Pessoas que inclusive tinham ojeriza ao mesmo. Novamente, a internet como um canal aberto com o além, direto com Deus? Em que podemos registrar nossas boas intenções, nossos sorrisos. Amenizar nossa culpa, dar cores mais vivas a um ideal de realidade. Em que preenchemos nossa própria timeline dando bons exemplos. O memorial digital, achamos um lugar para além da oração em que seria possível falar com quem já se foi? Deus é onipresente, portanto ele também está na internet, daria pra dizer inclusive que ele É a internet, o fluxo como um todo, em que o pensamento flutua, em que provavelmente nossos avatares ficarão impressos como o construto de Dixie Flatline, em que, no futuro, poderemos continuar a ser quem éramos até o dia em que morremos. Até que nos provem o contrário. Fique com Deus.